No final da 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi exibido o filme: Cavalo de Duas Patas (2008) da cineasta Iraniana Samira Makhmalbaf ( A Maça; O Quadro Negro e às Cinco Horas). A história é chocante: Um homem procura um menino para transportar nas costas seu filho deficiente físico que perdeu as pernas ( e a mãe) durante a guerra (Ira e Iraque) quando pisaram em uma mina terrestre. Depois de uma estranha competição, um menino (que tem uma certa deficiência mental) é escolhido e pou um dólar ao dia, ele deve transportar a criança sem as pernas de casa para a escola e de volta para casa, como um cavalo de duas patas.
O filme me causou uma sensação muito forte, pois me fez pensar que a cineasta está apresentado a situação atual do Irã (e de suas crianças e jovens) e das sociedades em todo mundo, pois existem outros temas tratados no transcorrer de 01:40 h. Quando saí da sessão do cinema estava transtornada pela dor aguda que as imagens haviam provocado em mim. Eu gosto muito de filme iraniano e, aprecio particularmente, o trabalho da Samira. O Quadro Negro já é um filme bastante contundente, mas o Cavalo de Duas Patas é muito, muito, muito mais.
Esse filme estava na lista dos meus favoritos, mas ontem ele se tornou o melhor filme que vi durante a 32 Mostra.
Ontem, depois de ter ido ao Museu da Língua Portuguesa, tudo foi resignificado. Ao acompanhar a instalação na praça da língua (3º andar) me deparei de repente com um trecho do capítulo 9 do livro: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), intitulado: O menino é o pai do homem. Nesse trecho Machado de Assis descreve a ação de um menino, filho de um senhor de engenho, transformando Prudêncio, um escravo, em seu cavalo. Quando ouvi e li o fragmento imediatamente lembrei do filme e, claro, do agudo senso visionário machadiano. Foi tão intensa a sensação que senti que não contive as lágrimas.
Quando fui à exposição sobre os 100 anos de nascimento de Machado outra surpresa me aguardava: há um quadro(1899) do pintor J. H. Papf intitulado: Bába com criança. Detalhe: a bába está em posição de 4 (é assim que se fala?) e a criança está montada em suas costas como quem brica de cavalinho. Aliás, as crianças gostam de brincar de cavalinho, não é? Jung e o inconsciente coletivo? Ao lado da pintura o trecho machadiano se repete.
O texto do Machado... A Pintura do Papf... O filme da Samira... Apesar do tempo que os separa parecem ter sido tecidos juntos. O que sabem eles sobre a complexidade?
Saudações fraternas.
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* Sônia Cândido é doutora em Antropologia Cultural. Atualmente leciona no curso de Teatro da Universidade Federal de Alagoas.