terça-feira, 18 de novembro de 2008

CAVALO DE DUAS PATAS ( por Sônia Cândido)

No final da 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi exibido o filme: Cavalo de Duas Patas (2008) da cineasta Iraniana Samira Makhmalbaf ( A Maça; O Quadro Negro e às Cinco Horas). A história é chocante: Um homem procura um menino para transportar nas costas seu filho deficiente físico que perdeu as pernas ( e a mãe) durante a guerra (Ira e Iraque) quando pisaram em uma mina terrestre. Depois de uma estranha competição, um menino (que tem uma certa deficiência mental) é escolhido e pou um dólar ao dia, ele deve transportar a criança sem as pernas de casa para a escola e de volta para casa, como um cavalo de duas patas.
O filme me causou uma sensação muito forte, pois me fez pensar que a cineasta está apresentado a situação atual do Irã (e de suas crianças e jovens) e das sociedades em todo mundo, pois existem outros temas tratados no transcorrer de 01:40 h. Quando saí da sessão do cinema estava transtornada pela dor aguda que as imagens haviam provocado em mim. Eu gosto muito de filme iraniano e, aprecio particularmente, o trabalho da Samira. O Quadro Negro já é um filme bastante contundente, mas o Cavalo de Duas Patas é muito, muito, muito mais.
Esse filme estava na lista dos meus favoritos, mas ontem ele se tornou o melhor filme que vi durante a 32 Mostra.
Ontem, depois de ter ido ao Museu da Língua Portuguesa, tudo foi resignificado. Ao acompanhar a instalação na praça da língua (3º andar) me deparei de repente com um trecho do capítulo 9 do livro: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), intitulado: O menino é o pai do homem. Nesse trecho Machado de Assis descreve a ação de um menino, filho de um senhor de engenho, transformando Prudêncio, um escravo, em seu cavalo. Quando ouvi e li o fragmento imediatamente lembrei do filme e, claro, do agudo senso visionário machadiano. Foi tão intensa a sensação que senti que não contive as lágrimas.
Quando fui à exposição sobre os 100 anos de nascimento de Machado outra surpresa me aguardava: há um quadro(1899) do pintor J. H. Papf intitulado: Bába com criança. Detalhe: a bába está em posição de 4 (é assim que se fala?) e a criança está montada em suas costas como quem brica de cavalinho. Aliás, as crianças gostam de brincar de cavalinho, não é? Jung e o inconsciente coletivo? Ao lado da pintura o trecho machadiano se repete.
O texto do Machado... A Pintura do Papf... O filme da Samira... Apesar do tempo que os separa parecem ter sido tecidos juntos. O que sabem eles sobre a complexidade?
Saudações fraternas.
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* Sônia Cândido é doutora em Antropologia Cultural. Atualmente leciona no curso de Teatro da Universidade Federal de Alagoas.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

APESAR DE TUDO, SER LIVRE!


O direito à livre manifestação do pensamento, bem como o direito de ir e vir e da liberdade sexual, são bens intocáveis e irrefutáveis para o desenvolvimento de um espírito democrático no meio social. Ter a possibilidade de expor opiniões; de fazer escolhas; de tomar decisões pessoais por meio de julgamento próprio; de criticar abertamente tudo aquilo que nos incomoda e de propor soluções aos erros que enxergamos no cotidiano não são direitos inerentes ao ser humano, mas conquistados a duras penas, através de muita luta, travada por aqueles que sempre acreditaram e ainda acreditam que a felicidade só é mesmo possível quando aliada à irrestrita liberdade do ser.
Ora, mas disso todo mundo já sabe (ou deveria saber). Ou porque escutou numa conversa, leu em algum livro ou assistiu num programa de TV. Além do mais, esse vem sendo um assunto batido e debatido amiúde nas escolas, universidades e ONGs das mais diferentes siglas.
De falta de informação ninguém pode se queixar!
O problema, meus amigos, é que tudo parece entrar por um ouvido e sair pelo outro, como se esse papo de “direitos” e “deveres morais” só fizesse efeito de verdade nos discursos de papel. Na vida real, as coisas seriam bem diferentes: “quem manda é quem tem dinheiro”, ou “rico nunca vai pra cadeia”. Típica argumentação do senso comum.
Mas uma coisa é certa: a defesa da liberdade de expressão vem, a cada dia que passa, ganhando uma conotação quase que angelical, com pouca ou nenhuma conexão com a realidade. E isso não acontece por acaso...
Levantar as bandeiras do combate às diversas formas de opressão parece confundir-se, aos olhos da sociedade, com a retórica política ou com os discursos dos velhos moralistas de sempre. Infelizmente. A banalização desse tipo de defesa nada mais é do que o resultado de uma contaminação torpe, promovida por aqueles que não estão nem um pouco preocupados com a luta pela liberdade do homem, mas apenas com a satisfação dos seus desejos imediatos.
Trocando em miúdos, o discurso da liberdade de expressão se enquadra atualmente em objetivos extra-coletivos, como vencer uma eleição política ou conquistar uma imagem ilibada perante a sociedade, por exemplo. Reflexo de uma sociedade capitalista/ individualista, onde a promoção da própria imagem é mediada por uma lógica de mercado: os produtos mais qualificados e em melhor preço aparecem no topo das vendas, ao passo que os demais tendem a invalidar-se nas prateleiras dos supermercados. Augusto Comte chamava isso de Darwinismo Social.
Quer dizer então que tudo está perdido e que devemos desistir?
Claro que não!
Um homem não pode existir sem uma ética que o defina, nem um norte que o oriente. E tudo depende, não só do meio cultural no qual nasce, cresce e evolui como cidadão, mas também de suas próprias escolhas.
Eu posso escolher me conformar com tudo e não lutar por nada. Achar que o mundo, apesar de injusto, não é tão ruim pra se viver e que não sou o culpado das mazelas existentes. Posso até concordar que um pensamento hegemônico se sobressaia ao meu, se considerar que isso será bom pra todo mundo...
Ou posso me rebelar, por acreditar que o que eu tenho a dizer também tem muito valor. Que as minhas idéias podem sim fazer a diferença, mesmo que muitos não concordem com ela. Que eu posso até gritar se quiser, mesmo que as mãos dos mais fortes insistam em me amordaçar.
Eu prefiro ser livre, apesar de tudo...